Não quero fazer desse um texto mórbido, nem padecido de tristeza, nem frases de efeito, nem minimizar seus problemas diante da minha perda, muito menos lições de vida, não quero o peso aqui. Vou dispensar o peso, ou melhor, vou livrar Antônia dos fardos que sempre carregou em vida e como meu último (talvez único) feito vou dar a ela, leveza!
Quando a notícia chegou não sabia exatamente as emoções que deveriam se apossar de mim, tal fato era inédito até então. É como se fosse um fim de um espetáculo realmente. A narrativa pode ser cômica ou trágica, mas o desfecho é o mesmo, a sentença é decretada, desligam-se os aparelhos, um último suspiro acontece, fecham-se as cortinas, é o ultimo ato. Dali pra frente, o que vem depois que as cortinas se fecham é só para quem acredita.
Para mim é tudo que permanece. É o que fica em mim, no entanto está indo embora. Vai-se embora tudo que me lembro e que era bom. O gosto da tangerina geladinha coberta por açúcar cristal, abacate congelado, maçã raspadinha na colher, rapadura que não é mole, mas cortadinha e dada na boca fica um doce só! Ainda guardo o cheiro do casaco e camisolas guardadas no armário com sache. Desde que me dou por gente a pele já era enrugada, os cabelos eram brancos, o corpo pequenino e cansado, mas com a força necessária para segurar essa que vos escreve no colo quando era um bebê, fanática pela boneca da Mônica.
É impressionante como a chegada da morte de alguém nos leva como num jato para o passado em comum com ela. Bem, para mim já faz parte do meu passado, para ela já deveria ser o principio do fim de uma longa jornada. O meu passado, que deveria ser o presente para ela, ainda tem cheiro de batata frita! Sim! Batata frita!
E não era batata frita comum, essas eram cortadas em quadradinhos não em tiras e dentro de toda a minha visão leiga gastronômica o fato delas serem cortadas de outra forma fazia toda diferença do mundo no sabor. As outras crianças sempre diziam que a melhor batata frita que comiam era do Mac Donald, e lá vinha eu toda metida e com uma autoridade única para afirmar que a melhor batata frita feita no mundo era a da minha avó!
Depois de comê-las num pratinho colorido de plástico, no lanche da tarde eu podia abusar do pão com mortadela ou da combinação perfeita de pão com manteiga e açúcar. Sério, eu não sei como não fui uma criança obesa.
Dentre as lembranças maravilhosas que temos da infância que inclui pique – esconde, pique-pega, aprender a andar de bicicleta, queimado, recreio, biscoito mirabel, dar comidinha para boneca, ralar o joelho ao cair na brincadeira, na base dessa pirâmide está uma AVÓ. Tem coisa que lembra mais infância do que a avó?
A minha avó tinha ainda na memória todas as gracinhas que eu fazia quando pequena, as primeiras palavras, coisas que nem minha mãe lembra mais. Tudo que eu via nela era uma pureza única, um olhar que apesar de todos os anos que carregava só guardava inocência, como uma criança que não teve tempo de brincar tudo o que devia.
No meu ultimo aniversário ela mandou me entregar um presente, uma gatinha de pelúcia rosa que mia quando leva palmadinhas. É ou não é inocência pura? A partida dela, no entanto é a minha primeira perda, é a ficha caindo (ou não ainda) que crescendo a gente acaba perdendo também. Porém uma calma incrível se instala em mim porque não sinto mais tanto medo, pois dessas perdas nascem os anjos que nos protegem.