quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Dizem que eu sou louco

Serei eu que tipo de louca?
Que tipo de mal insano eu devo carregar em mim?
Penso nos loucos da minha rua. A minha rua habita loucos aos montes.
Penso na Maluquinha do cuspe, que cospe feito atiradeira no rosto de quem passa despercebido, ela também grita, urina e defeca no chão da rua sem o menor pudor, afinal, é louca! E aos loucos é permitido quase todos os tipos de atos. Aos loucos é permitida uma espécie de liberdade única. Que nós, os sãos, não encontramos nunca.
Tem também a Doida do fogo, que cospe fogo pelas ventas, desce a rua com seu isqueiro e uma garrafinha de álcool, sempre pronta a nos surpreender com sua habilidade em pirotecnia.
Logo depois dela, vem descendo o Doido atormentado, não que todos eles não sejam atormentados, mas esse nos deixa claro todo dia seu transtorno. É culpa de um filho da puta que o levou mulher e filho e ainda de lambuja, todo o seu dinheiro. Essa versão é a que ele esbraveja aos quatro ventos, e faz promessa de morte ao invisível, sempre ameaçando o vento com uma garrafa ou pedaço de madeira.
Antes tarde do que nunca, vem o Louco da madrugada. Eu não sei por que, mas ele sempre vem depois da meia noite. Os outros loucos perambulam e fazem seu protesto em plena luz do dia mesmo. Já este prefere a noite e sua calmaria. Grita nomes em vão, xinga até sua última geração, mas não faz mal a ninguém.
Estes são loucos com razão, se é que há alguma razão na loucura...Acredito que haja. Não sei o que dizer da minha loucura. Como explicar uma loucura que não me deixa dormir às quatro horas da manhã? Que deixa acordada à contemplar o teto e buscar nele solução? Que faz tremer a mente e tudo o que sobre de razão nela?
Eu sei que me cansei dela, dessa minha loucura.. Não sei fazer um espetáculo do porte dos loucos da rua, logo, se não sei fazer loucura com tudo que ela tem direito, sou obrigada a me retirar da categoria.
Abro espaço aos loucos de verdade, aos criativos e inventivos, os capazes de viajarem para outros mundos e serem o que der para ser. A mim, cabe apenas uma insignificância nesse ramo. Não, não passei no teste. Não sou louca, só perdi o sono por algo que não valia muito a pena. 

                                         

                                               

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O índio caído

Era a minha parte favorita da viagem a Campos. Eu viajo para Campos dos Goytacazes desde que me entendo por gente, freqüento tanto e faço tão pouca coisa por lá que nem posso mais considerar uma viagem de verdade. Mas após as quatro longas horas de viagem, pela BR-101, recheadas de sanduíches e biscoitos para distrair a barriga havia algo no fim da viagem que quando criança era, para mim, praticamente o pote de ouro no fim do arco-íris.
A cidade de Campos era terra dos índios Goitacás e como referência ao seu passado histórico fora erguida a estátua de um índio fazendo alusão aos verdadeiros representantes daquela terra. Como todo índio que se preze, o índio Campista vestia uma saia e era munido de um belo e poderoso arco e flecha. Eu não sei dizer, mas aquele indígena exercia um grande fascínio sobre mim, e lá na minha casa quando se anunciava a ida para Campos eu logo pensava “Eba! Vai ser dia de índio!”.
Mais importante que ver tia, avó, primos ou festa de São Salvador (a quem interessar possa este é o padroeiro da cidade do norte fluminense), o índio era o grande carro chefe da cidade na minha humilde opinião infantil. Ser recebida por ele de braços abertos, ou melhor, de arco e flecha na mão, era o máximo. Essa recepção despertava em mim a idéia de que uma aventura estava prestes a começar.
O tempo passou, os governantes mudaram, Garotinhos e Rosinhas se proliferaram, e a modernidade com seu ar de colonizador derrubou a estátua do índio. A cidade passou por um período de turbulência na política, mas sua economia se destacou pela exploração de petróleo na Bacia de Campos.
Mudou-se o contexto, mudou-se o foco. O que era para ser rural virou urbano. O que era para contar história contou futuro. O que era para ser valorizado foi tombado e no pior sentido da palavra.
Derrubou-se a estátua do índio e em seu lugar reina uma horripilante estrutura representando as máquinas que extraem petróleo na plataforma. É como se a revolução industrial estivesse devastado os nativos de Campos. Aí, você em diz “Mas é bem mais moderno”, “É sinal de novos tempos”, “Mostra o desenvolvimento da cidade”. E eu te digo ”É assim que se aniquila o passado”, como se faz o presente e se programa o futuro, sem olhar para o passado? Eu vejo um atropelamento da praticidade sobre tudo o que contou a história.
Ao observar as cidades notamos aqueles prédios velhos do início do século passado tentando sobreviver, quase que se afogando no meio de tanta obra, prédios de concreto e arranhas céus, que surgem no lugar do que é antigo. Toda história é varrida de nossas memórias e substituída por um belo prédio de concreto. As cidades contam sua história, a cada velha casa, e cada fachada moribunda é uma página do seu passado.
No nosso mundo hoje sei que não há tempo para ontem. Mas ontem nem faz tanto tempo assim, o ontem acabou a vinte e quatro horas atrás. A modernidade ou os chamados “novos tempos” já atropelaram tanto os resquícios de uma história que hoje a modernidade, com suas novidades e atualizações a cada segundo, também já é passado. Somos todos sucumbidos pelo tempo que corre demais.
O índio do Trevo em Campos não conseguiu se manter como dono da terra. Araribóia em Niterói que se cuide, e os indígenas da Praça Tiradentes podem estar com os dias contados. E a qualquer momento, quando estivermos muito absortos com nossos smart phone ou Iphones, sem atenção ao que ocorre no nosso redor, neste momento exato, seremos também sucumbidos pela velocidade e pelo fato de sermos tão descartáveis quanto qualquer estátua em uma cidade.

                 

                                    Aqui jaz um Goitacás

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Olha aí, é o meu guri

“Bola de meia, bola de gude, o solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança o menino me dá a mão”
 (Milton Nascimento- bola de meia, bola de gude)

É mais ou menos como na canção acima que eu vejo a história deste garoto pelos corredores da Universidade. A Universidade de Filosofia, História e Ciências Sociais foi o berço do menino, depois seu chiqueirinho, e depois, foi lá que ensaiou os primeiros passos e hoje corre feito um desvairado com energia e entusiasmo invejados pelas múmias que lá habitam.
Os pais do menino trabalham na cantina da Universidade desde antes do seu nascimento, dentro da barriga da mãe ouvia falar das provas finais, da esticadinha depois da aula, da discussão sobre as eleições para o Centro Acadêmico.
 Para dar uma incrementada no ambiente no qual fora imposto, ele lança mão da bola de gude, do peão, da bola, não o vejo com os Nintendos da vida, e outras parafernálias do mundo contemporâneo infantil.
Eu vejo o menino crescer entre as paredes da mais alta intelectualidade da cidade, entre Nietzsche e Foucault, tocando a bola para Walter Benjamim e fazendo um drible em cima de Kant. O menino, em seu uniforme surrado e que não teve o prazer de conhecer um amaciante, brinca de deslizar pelos corredores. É uma de suas brincadeiras favoritas, ainda mais depois que o chão é lavado e banhado com o extra-brilho, pela Dona Ana, uma das faxineiras da faculdade.
Enquanto ele desliza naquele vale de intelectualidade, onde mestres e doutores discutem fervorosamente a metafísica e problematizam o pensamento, o garoto luta contra dragões, cai em um ninho de serpentes, combate piratas e derrota um exército de mortos-vivos.
Nesses 8 anos de experiência universitária, ele já viu um pouco de tudo. E transita por todos os grupos, não tem preconceito de tribo. Vai no andar em que a fumaça de cheiro diferente incorpora as conversas dos estudantes, porém a fumaça não o incomoda. Como o menino não tem convencionalismos ele ouve com atenção ao violão do rapaz, um barbudo e com roupas mais sujas que a sua, que está na roda com outros rapazes e moças que passam o cigarro um para o outro, em uma pequena roda, como se brincassem de ciranda na imaginação do menino.
No outro andar ele entra no Centro Acadêmico, a discussão de hoje é o direito por mais poder de opinião nas decisões da reitoria. Um estudante fala para os outros colegas em cima de uma mesa velha. Ele esbraveja sua causa e os diretos dos estudantes, e que eles deveriam se unir e reivindicar, mas na imaginação do menino o estudante se transforma em um Rei poderosíssimo e que convoca seu exército para o combate das tropas inimigas.
Ele gosta muito de entrar sorrateiramente na biblioteca ou nas salas de aula (na sala de aula da sua escola ele não é muito freqüentador), onde os alunos estudam e discutem a Civilização helenística, os Impérios Romano e Bizantino, e também as Revoluções Sociais e as Ditaduras na América Latina. O menino ficava num cantinho, calado sempre com um livro a folhear as páginas e pousar os olhos em nomes bizaríssimos como Xenofonte, Tucídides, Heródoto, Teodorico, e povos como os turcos otomanos, visigodos, ostrogodos! Entre uma aula e outra, entre uma discussão no café da universidade, e um grupo de estudantes concluindo o trabalho do semestre, o menino viajava no tempo e abusava do anacronismo, Carlos Magno e Napoleão duelavam, Romanos derrubavam a Bastilha, o Cavalo de Tróia invadia a Rússia e derrubava o Czar. Para ele não tinha tempo de ninguém. O tempo e as histórias estavam na sua cabeça e era a imaginação que determinava temporalidade, século e batalhas. E Príncipes e princesas trocavam de par sem a menor cerimônia, Maria Antonieta se arranja com D. Pedro I, Ana Bolena largou Henrique VIII e foi ciscar no quintal do Simon Bolívar, Lutero largou a religião e foi viver feliz ao lado da Princesa Isabel!
E dessa maneira o menino foi fazendo história na Universidade, todo mundo sabia seu nome, os meninos brincavam com ele de bola de gude e os ensinaram a jogar buraco. As meninas o achavam uma graça, mesmo que toda vez ele fosse se esconder da chinelada da mãe no banheiro feminino!
Para ele nada daquilo parecia chato. Chato era ir pra escola, ter que estudar matemática e aturar os moleques mais velhos pegando no pé dele. A vida nos corredores em cada andar até podia ser sozinha, mas lhe rendia muita coisa para contar aos colegas. Mas mesmo com tanta informação, tanto nome estranho que foi conhecendo, tanta coisa que ele foi descobrindo, mesmo com essa bisbilhotice toda, nada das notas do boletim da escola melhorar!